terça-feira, 30 de junho de 2009

RAZÃO ANTROPOFÁGICA: BLACK STYLE E A ANTROPOFAGIA

1. INTRODUÇÃO
Leio sobre antropofagia e só vejo cultura “erudita”. De Haroldo de Campos a Caetano Veloso a antropofagia como marca de certa cultura elitizada, de alguma forma hegemônica e consagrada. Perguntei-me, então: se a antropofagia pode ser pensada como traço cultural nacional, que dizer das produções não-eruditas? Que dizer do pagode, por exemplo?
Tentei responder a algumas questões dessa natureza através da análise do pagode. Escolhi o Black Style, grupo de pagode soteropolitano. Depois de um passeio oswaldiano por conceitos e fatos históricos ligados a fantasia, passo para a apreciação de três músicas da banda pensando como a razão antropofágica atravessa esses discursos.

2. RAZÃO ANTROPOFÁGICA: BLACK STYLE E A ANTROPOFAGIA

Oswald de Andrade: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval. O índio vestido de senador do império.” [1]
Haroldo de Campos: “A “Antropofagia” [...] é o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado [...] a partir do ponto de vista do “mau selvagem”[...] O canibal era um polemista [...], mas também um antologista.” [2]
Mário de Andrade: “(Este livro, afinal, não passa de uma antologia do folclore brasileiro)”.[3]
Oswald de Andrade e seu Manifesto antropófago. Mário de Andrade e sua tentativa de definição para Macunaíma. Antropofagia. E Haroldo de campos resume a questão: antropofagia é antologia e polêmica. Uma apropriação, mas também uma expropriação. Tomar o que é dos outros e modificá-lo, pensá-lo, criticá-lo, remodelá-lo. O inimigo que nos faz fortes. Isso a antropofagia. Andradina.
1555 – Os índios caetés devoram (literalmente) o Bispo Sardinha no litoral de Alagoas. Antropofagia.
Séc. XVII – O Barroco: “Gregório de Matos é já o nosso primeiro antropófago [...] o nosso primeiro transculturador.” [4]
1956 – A poesia concreta. Devoração do código poético. Redefinição da função poética. Devoração da música. Poesia polifacética. Antropofagia.
Séc. XXI – Black Style. PagoFunk. O funk, o estrangeiro, o exército. Devorados. Antropofagia.

3. BLACK STYLE E A ANTROPOFAGIA

Começo este trabalho antropofagizando o estilo oswaldiano do Manifesto antropófago. Desta maneira entrecortada, telegráfica mesmo, Oswald de Andrade aponta para uma nova forma de pensar a cultura no Brasil. A “razão antropofágica” (termo de Haroldo de Campos) atravessa vários momentos da “cultura brasileira” (veja-se, por exemplo, o texto de Haroldo de Campos Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. Ali o teórico expõe como essa razão antropofágica esteve presente desde o barroco em produções literárias brasileiras).
Aqui, porém, quero falar de um grupo de pagode baiano que utiliza essa “razão” em varias de suas canções. Trata-se do Black Style. A banda faz parte de cena cultural baiana desde 2006, quando foi fundada. Suas canções, muitas delas de cunho erótico, acabaram ganhando a simpatia de camadas populares da sociedade: negros e pobres, homens e mulheres que se deixam levar pela sonoridade e pela dança sensual (sexual?) da banda.
Cultura de massa? Sim, embora não goste do termo. “Massa” parece uma coisa amorfa, com a qual se pode fazer o que se quer. É inexato. O termo fica, mas minha discordância, ou, ao menos, minha relativização, dele fica marcada textualmente pelas aspas.
Tendo como componentes Robson Adorno (vocal), Nelson Rocha (bateria), Edson Bonfim (guitarra e direção musical), Fábio Santana (baixo), Ramon Costa (Beck vocal), Hortson Silva (Teclado), Victor Silva (Cavaco), Jeanderson Costa, Raijan Reis, Ronilson Gama e Ricardo Silva, a banda já lançou três CDs: Os bambambans (2006), Solta o Tambozão (2007) e O PagoFunk da Bahia (2008). Este último CD traz no título o termo PagoFunk, primeira antropofagia que analisarei aqui.
O funk carioca (ou apenas funk, como é chamado na cidade onde nasceu) traz uma batida sincopada e letras que muitas vezes falam de amor e sexo. Muitas semelhanças com o pagode baiano. Entretanto, difundiu-se uma certa tradição no pagode baiano de duplicar o sentido das expressões a fim de dar a idéia de uma certa sexualidade, mas sem dizer dela abertamente. Pela inspiração no funk, o Black Style fala de sexo de maneira mais escancarada. Três trechos de músicas, um pagode da banda Parangolé, um Funk de Tati Quebra Barraco e outro pagode, este do Black Style podem servir para pensar esta minha afirmação:

Ela não assiste desenho
Do lobo mau
Ela agora só quer ver
Desenho do pica-pau[5]

Abre as pernas, mete a língua
Já viu como é que faz
Tira a camisa, bota-tira, entra e sai[6]

E aquela loirinha
Oooooooh
Me mata de tesão
Tcheeee
Eu vi uma negona
Oooooooh
Eu fiquei com vontade de fazer o creu[7]

Noto, no primeiro trecho, um esforço em duplicar os sentidos de “pica-pau”, fazendo-se referência ao órgão sexual masculino (pica ou pau, tanto faz), mas não abandonando o outro referente, o desenho animado. Na música de Tati Quebra Barraco o sexo aparece explicitamente, sem rodeios. Sem abandonar completamente a tradição à qual aludi anteriormente, o Black Style fica no meio termo, entre um e outro. A referência ao sexo é evidente, mas a palavra não é utilizada. Antes, troca-se o termo pelo eufemismo (!) “créu”.
Aliás, a referência a este outro funk, a Dança do Créu, do MC Créu, já nos leva a outra antropofagia, imbricada na primeira. Nesta canção, dividida em cinco velocidades, o MC aumenta a dificuldade de execução do passo a cada estrofe (outra característica que aproxima pagode e funk: as letras, muitas vezes, fazem referêcia explícita aos passos a serem executados na dança). Ao fim, a dança se assemelha ao movimento copulativo. No Créu Colombiano do Black Style a visão da “loirinha” e da “morena” dão ao eu-poético vontade de “fazer o créu”. Antropofagia da música do MC. Antropofagia em todos os sentidos: cultural e sexual. Interessante é que se faz referência ao “frango assado” (a posição sexual, evidentemente). Mais antropofagia(s).
A Dança do Créu é aqui relida e despida de sua característica eufêmica original. Não há nenhuma dúvida sobre o assunto da “conversa”. Paradoxalmente, porém, a antropofagia acaba revestindo o termo créu de outros múltiplos sentidos, chegando-se mesmo a tocar, ainda que de leve e por uma metáfora, no comer literal.
Disse anteriormente que o estrangeiro seria comido. Estão aí Mariah Carey e sua canção Without You que não me deixam mentir. O pop romântico da cantora fala de uma perda amorosa, o desconsolo de alguém que deixa partir aquele a quem ama. A leitura do Black Style para essa canção abandona o tom tristonho e se dirige a alguém que tem nome: Yasmin. Na música Yasmin não há abandono. Há uma dúvida: “já não sei se estou na solidão”.[8] Mas não há aquele sofrimento romântico, com laivos de desmaio.
No site oficial do grupo encontrei o seguinte comentário sobre Yasmin:
Também há espaço para um pagode mais romântico no repertório da banda como a música “Yasmin”, que foi uma das mais executadas nas rádios de Salvador. A versão da música “Without You”, da cantora americana Mariah Carey, tem uma letra que fala de amor, e sua melodia romântica já caiu no gosto do público, sobretudo feminino, já que a música exalta a mulher. [9]
Antropofagia do pagode para com a música dita romântica. E estrangeira. O tema, a batida e o idioma são adaptados ao bel-prazer dos tocadores e dos ouvintes, e, sem estabelecer um vínculo com a tradução literal ao semi-literal da letra, aproveita-se o ritmo e inventa-se o resto. O que poderia parecer um inimigo (pergunto-me, quantas pessoas que ouvem Mariah Carey ouvem Black Style? Talvez muitas. Mas somente através de Yasmin se pode ouvir os dois ao mesmo tempo) é convocado a participar do movimento antropofágico de apropriação.
Para terminar: Exército. Por ter uma letra curta, transcrevo-a literalmente:
Eu servi o exército,no 19 BC.Era preguiçoso,nada queria fazer.Lá o bicho pega,você tem que obedecer.De manhã cedo,me botavam pra correr.Atenção pelotão:Preparar, apontar. (Vamos correr)Vamos correr, vamos correr, vamos correr, vamos correr. (8x) [10]
Aqui, uma crítica ao serviço militar obrigatório. O eu-poético não deseja servir ao exército (se houver um cunho autobiográfico, poderia chamar esse eu-poético de Robson Adorno, o Robsão, vocalista da banda e compositor dessa canção): “[Eu] era preguiçoso, / nada queria fazer”. A antropofagia fica por conta da melodia. O som de banda marcial soa durante toda a música. O alvo da crítica é representado por esse som que acaba virando apenas ruído de fundo quando se coloca a batida do pagode e a voz do cantor sobre ela.
Leio essa montagem (no sentido eisensteiniano do termo) como uma pequena narrativa: primeiro, o som da banda marcial representando a “ordem” e a “disciplina” impostos pelo exército (ocidental). Depois, essa representação é abafada e suprimida pelo som de matriz africana (logo, não-ocidental) do pagode que pode representar uma certa “liberação” dessa imposição. O som marcial e seus sentidos ainda estão lá, assim como o exército e o serviço militar obrigatório ainda estão lá. Mas, sobrepondo-se a tudo isso, o som que significa a marca identitária do eu-poético surge, inexorável.

4. CONCLUSÕES

Se a antropofagia é marca de uma identidade nacional, então não são apenas as culturas “eruditas” que refletem sobre essa identidade. Vimos a cultura “não-erudita”, representada aqui pelo Black Style, utilizando-se desse processo para (re)criar canções que passam a refletir um certo pensar. Exército é, talvez o caso mais flagrante de como se se transforma tabu em totem através do pagode. O lado polêmico do antropófago surge aí com muita força: é mesmo uma luta o que se trava diante de nossos ouvidos e dentro de nossas cabeças ao escutar a canção.
Se há razão antropofágica no barroco, na poesia concreta, em Caetano Veloso, parece haver tanto ou mais razão antropofágica nesse pagode canibal: antologista e polemista.
Bibliografia

ANDRADE, Mário. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2008
ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. 2. ed. rev. e ampl. Edusp: São Paulo, 2008
BARRACO, Tati Quebra. Abre as pernas, mete a língua. Disponível em: Acesso em: 08/07/2009
BLACK STYLE. Creu Colombiano. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009
BLACK STYLE. Exército. Disponível em: <> Acesso em: 29/05/2009 BLACK STYLE. Yasmin. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009
BLAK STYLE. A banda. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009 PARANGOLÉ. Pica-pau. Disponível em: Acesso em: 08/07/2009
CAMPOS, Haroldo. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: _____. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 4. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2006
VELOSO, Caetano. Antropofagia. In: ______. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008

[1] ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. 2. ed. rev. e ampl. Edusp: São Paulo, 2008 p. 174, 175
[2] CAMPOS, Haroldo. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: _____. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006 p. 234, 235
[3] ANDRADE, Mário. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2008 p. 220
[4] CAMPOS, Haroldo. Ibid. p. 241
[5] PARANGOLÉ. Pica-pau. Disponível em: Acesso em: 08/07/2009
[6] BARRACO, Tati Quebra. Abre as pernas, mete a língua. Disponível em: Acesso em: 08/07/2009
[7] BLACK STYLE. Créu. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009
[8] BLACK STYLE. Yasmin. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009
[9] BLAK STYLE. A banda. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009
[10] BLACK STYLE. Exército. Disponível em: <> Acesso em: 29/05/2009

2 comentários:

Alessandra Costa Calixto disse...

Oi Leo!! Parabéns, análise interessante! Só tenho uma sugestão: se quer atrair um público maior, como o pessoal do GAPECC, deveria usar uma linguagem menos densa, sua linguagem bastante acadêmica e em algumas partes há ambiguidade.
PS: o pessoal amou vc!Bjs

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.