sábado, 29 de novembro de 2008

A PERPETUAÇÃO DE ESTEREÓTIPOS NA MÍDIA INFANTO-JUVENIL: A TV XUXA

1. INTRODUÇÃO

Esse é um trabalho escrito sob urgência. Uma urgência de falar, de escrever e de ser ouvido. Ao contrário de Fanon, o que queimava em mim precisou precisava ser dito o quanto antes. E eu disse. Depois, com mais calma, mas ainda em queimação eu reescrevi. Mas as marcas da pressa e da urgência continuam por aí. Peço desculpas, aliás, não peço não. Que a leitura deste seja instigante e perturbadora.

2. A PERPETUAÇÃO DE ESTEREÓTIPOS NA MÍDIA INFANTO-JUVENIL: A TV XUXA

Infeliz. Eis como considero a apresentação da dupla "As absorventes" no concurso de paródias da TV Xuxa do sábado, quatro de outubro de 2008. A paródia por elas apresentada baseou-se na música Trem das Onze e intitulava-se Cheiro de Asa. Como foi exaustivamente repetido após a apresentação das meninas, elas são boas comediantes. A paródia foi bem feita. A intenção da apresentação foi humorística. E elas são excelentes atrizes. Mas não posso deixar de fazer uma ressalva, aliás, da maior pertinência: a repetição de estereótipos com respeito à representação do negro.

Uma das garotas aparece pintada de preto, com a boca excessivamente vermelha e uma peruca de cabelos desgrenhados. É a síntese da ridícula representação do negro perpetrada e perpetuada no decorrer dos séculos: a “nega maluca”. Esse tipo de figura padroniza e coisifica a etnia. O curioso é que não há nada na letra da paródia por elas criada que justifique o uso de blackface. Foi uma escolha muito infeliz, mas que talvez revele um imaginário que perpassa nossa mente e nosso discurso e talvez nem percebamos.
Trata-se da estigmatização, a identidade virtual que gera estereótipos, como diz Muniz Sodré, depois de falar da identidade social real e da identidade social virtual:


"Na passagem do potencial/virtual para o real/atual, surge o estigma, a marca da desqualificação da diferença, ponto de partida para todo tipo de discriminação, consciente ou não, do outro. [...] Da identidade virtual nascem os estereótipos e as folclorizações em torno do individuo de pele escura." (SODRÉ, 1999 p. 246)


De especial interesse é a expressão “consciente ou não”. Asseverar que a discriminação pode ou não ser consciente tem implicações interessantes num país em que a maioria das pessoas diz haver racismo, mas, ao mesmo tempo, afirma não ser preconceituosa. Quer dizer, ou as pessoas estão com a impressão errada do Brasil (hipótese, aliás, facilmente descartável), ou algumas (muitas?) são preconceituosas sem o saber. Aí reside, a meu ver, o perigo de representações como as veiculadas no programa que analiso aqui. Elas naturalizam representações estereotipadas que acabam fazendo parte do imaginário sem que as pessoas se dêem conta disso. E, talvez ainda pior, promovem “a internalização pelo indivíduo escuro de imagens negativas sobre si mesmo”. (Id. Ibid. p. 235)

Para piorar ainda mais as coisas, acrescento à minha análise dois elementos: a representação masculina e a própria paródia. Pensando tudo isso como um único conjunto, temos uma negra (estereotipada até o limite, conforme explanei acima) sendo detratada e tendo atribuídas a si características negativas (odores desagradáveis nas axilas, flatos) por um homem de pele clara. Em outras palavras, a mulher negra sendo maltratada pelo homem branco. (Não sei, mas isso se parece muito com uma situação que deveria ter sido extinta em 13 de maio de 1988). Vimos ainda, em resultado da escolha dos personagens a ser representados, o homem branco como aquele que traz "civilidade" (é ele quem aconselha: use talco pra chulé). E mais uma vez todas as qualidades negativas são atribuídas ao negro. Parece que os idealizadores da apresentação ainda não se deram conta do que diz Sir Alain Burns, citado por Frantz Fanon em Pele negra máscaras brancas: “Não podemos [...] considerar como cientificamente estabelecida a teoria segundo a qual o homem negro seria inferior ao homem branco [...]” (2008 p.43, 44).

Destaco também o paulatino apagamento da voz feminina e negra. Não lhe é dado falar, uma vez que sua voz é considerada como sem importância, o que apenas reforça o processo de coisificação, já aludido. A fala pertence apenas à representação masculina e branca. Não há direito de defesa. (Em certo sentido, ainda bem, já que, se considerarmos o conjunto apresentado, a única representação verbal que poderíamos esperar da personagem negra seria o caricatural português "estropiado", cheio de sons guturais, como é comum em estereótipos desse tipo).
Duas semanas se passaram e “As absorventes” fizeram outra apresentação na TV Xuxa.

3. NUM OUTRO SÁBADO

Duas semanas depois da apresentação analisada acima, a mesma dupla, “As absorventes”, apresentou-se novamente na TV Xuxa. Dessa vez, a apresentação foi um pouco diferente e se pretendia menos problemática. A música parodiada foi Meu ébano, de Alcione. Novamente foi usado o blackface, mas, neste caso, o recurso se “justificaria” pela letra da paródia, já que os personagens se tratam por “nega” e “negão”. Também, a maquiagem usada nesse blackface é mais naturalizada, tentando se aproximar dum tom de pele mulato (duas semanas antes uma das mulheres havia sido pintada de preto, tipo cor de piche). Neste caso, é a mulher que fala quase o tempo todo e o homem tem a oportunidade de se defender. Assim a voz não fica restrita a apenas uma das figuras.

Mesmo assim, ainda há graves problemas nessa representação. Se, por um lado, é certo que a maioria dos habitantes das favelas no Brasil são afro-descendentes, também é certo que o tipo de representação promovido pelas “absorventes” não ajuda em nada a desconstruir estereótipos quanto a isso. Vejamos, pois: a mulher reclama que paga as contas ela mesma, enquanto o marido não quer trabalhar. Não é a primeira vez, e, infelizmente, não será a última em que os negros são marcados com o estigma da preguiça. Não é assim que são vistos os nascidos na Bahia, o estado com maior concentração de afro-descendentes?

Ainda mais, ao fim da paródia, quando é dada a voz ao homem acusado de preguiça, ele simplesmente afirma: “A vida que eu levo é tudo de bom”. Isso apenas reforça os estereótipos já referidos. A voz do acusado aparece, mas ele não se defende, como se aquela fosse uma característica própria sua e como se ele tivesse de se orgulhar disso. Isso é sintomático do problema ao qual aludi anteriormente: a interiorização, por parte dos próprios negros, dos estereótipos a ele associados. Ironicamente, a música escolhida para ser parodiada traz um elogio a “um negão de tirar o chapéu” (é claro que há alguns problemas a ser analisados na canção original, mas isso é assunto para um outro trabalho). Cabe aqui a reflexão de Fanon: “O problema é saber se é possível ao negro superar seu sentimento de inferioridade, expulsar de sua vida o caráter compulsivo, tão semelhante ao comportamento fóbico.” (Ibid. p. 59)

Temos aqui uma relação ambígua. “As absorventes” não conseguem se afastar dos personagens negros (pelo menos metade das apresentações delas na TV Xuxa teve personagens negros), mas sempre os representam dentro dos estereótipos e estigmas já mostrados. As palavras de Stuart Hall auxiliam a pensar essa questão:


"Em terceiro lugar, devemos ter em mente a profunda e ambivalente fascinação do pós-modernismo pelas diferenças sexuais, raciais, culturais e, sobretudo, étnicas. Em total oposição à cegueira e hostilidade que a alta cultura européia demonstrava, de modo geral, pela diferença étnica - sua incapacidade até de falar em etnicidade quando esta inscrevia seus efeitos de forma tão evidente –, não há nada que o pós-modernismo global mais adore do que um certo tipo de diferença: um toque de etnicidade, um "sabor" do exótico e, como dizemos em inglês, a bit of the other (expressão que no Reino Unido possui não só uma conotação étnica, como também sexual). Em seu ensaio "Modernismo, pós-modernismo e o problema do visual na cultura afro-americana", Michele Wallace acertou ao indagar se esse reaparecimento de uma proliferação da diferença, de um certo tipo de ascensão do pós-moderno global, não seria uma repetição daquele jogo de "esconde-esconde" - que o modernismo jogou com o primitivismo no passado - e ao indagar se esse jogo não estaria sendo novamente realizado às custas do vasto silenciamento acerca da fascinação ocidental pelos corpos de homens e mulheres negros e de outras etnias. Devemos indagar sobre esse silêncio contínuo no terreno movediço do pós-modernismo e questionar se as formas de autorização do olhar a que esta proliferação de diferença convida e permite, ao mesmo tempo em que rejeita, não seriam, realmente, junto com a Benetton e a miscelânia de modelos masculinos da revista The Face, um tipo de diferença que não faz diferença alguma." (HALL, 2006 p. 319-20)


Desde já pedindo perdão pela citação demasiado longa, mas necessária, digo que esse parágrafo explica-se por si mesmo. Acrescento apenas que a dupla de comediantes se enquadra muito bem nesse movimento (pós-moderno) ambivalente. Parece-lhes necessário mostrar a diferença, mas a única coisa que elas trazem de fato é essa “diferença que não faz diferença”. O movimento é parecido àquele explicado por Homi K. Bhabha em O local da cultura: a criação dos estereótipos se daria justamente nesse contexto de fascínio que demanda afastamento, de desejo mesclado com a repulsa.
Quer me parecer, portanto, que esse tipo de representação cria um ambiente favorável para a criação e perpetuação de estereótipos. Não pretendo listar aqui medidas que desagravariam a apresentação das "absorventes", que a tornariam menos problemática. Ressalto, porém, que a repetição desse tipo de representação num programa infanto-juvenil em pleno sábado de manhã apenas ajuda a perpetuar nas mentes de crianças e pré-adolescentes estereótipos e preconceitos que, na verdade, nos cumpre extirpar. A emissora demonstra, assim, sua falta de engajamento com movimentos que não são recentes e que ganham cada vez mais força, no sentido de retirar pechas da imagem tanto do negro quanto da mulher.


REFERÊNCIAS
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998
FANON, Frantz. Pele negra, mascaras brancas. Salvador: Edufba, 2008
HALL, Stuart. Que “negro” é esse na cultura negra? In: SOVIK, Liv (org.). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2006
SODRÉ, Muniz. A diferença e a mídia. In: Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999

Um comentário:

Alessandra Costa Calixto disse...

Fiquei fascinada pelo seu texto!! Parabéns!! Você escreve muito bem! Gostaria de convidá-lo para dar uma palestra sobre o assunto no Curso pré-vestibular comunitário o qual faço parte e, então conhecê-lo pessoalmente! Ele acontece no Colégio Central em Nazaré. Minha prima Juliana, conhecida sua, me falou sobre você! Aguardo resposta!