quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O BBB e o cordel

Recebi um emeio essa semana de uma professora de arte-educação. Tratava-se de um cordel cujo tema é, no mínimo, perturbador: Big Brother Brasil, um programa imbecil. Constava o endereço do blogue de seu autor. Decidi ver o blogue e observar alguns comentários.

Realmente o texto é o que o título dá a entender – um ataque feroz ao BBB. Como não assisto ao programa (aliás, não o suporto), não posso nem afirmar nem denegar alguns dos ataques a ele feitos no cordel (coisas relativas propriamente ao programa), mas posso, e isso farei, analisar alguns pontos que considero críticos na análise feita por seu autor.

Em primeiro lugar, o autor ainda trabalha com a noção de alienação, sem problematizá-lo: “Que além de alienar / Vai por certo atrofiar / A mente do brasileiro.” Não estou aqui dizendo que não existem pessoas alienadas, mas fico a me perguntar se essa alienação não é, de certa forma, voluntária. Não tenho a pretensão de ter a resposta a essa questão, mas aí vai ela: Não seria possível, ao invés de considerar a população como vítimas do BBB, tal qual faz o cordelista, pensá-la como tomando de maneira consciente a decisão de assistir a esse programa? Nesse caso, o problema seria pensar o porquê dessa escolha, sem necessariamente condená-la.

Outra noção também bastante problemática é a de evolução. Parte de uma visão muito linear da história e da educação (“Me refiro ao brasileiro / Que está em formação / E precisa evoluir / Através da Educação”). E ainda levanta outra questão: Só a evolução que ele pretende é boa? Não pode haver outras formas de evolução? Bem entendido: não trabalho com a idéia de evolução.

Outro problema: o autor diz que a família está longe da realidade, ao assistir ao BBB. Pois bem, é preciso esclarecer a idéia de realidade presente nessa afirmação. A que realidade ele se refere? Não há realidade em um grupo de pessoas se isolarem numa casa? Embora esse não seja a idéia exata de realidade com que trabalho, essas pessoas não estão realmente lá? E isso, quer queiramos quer não, não faz parte de nossa realidade? Se o cordelista deseja que outra realidade seja observada, pois bem, mas daí a dizer que essas pessoas estão fora da realidade, vai uma boa caminhada.

Agora, o que me parece uma demonstração muito evidente de sentimento de superioridade:

“Se a intenção da Globo
É de nos “emburrecer”
Deixando o povo demente
Refém do seu poder:
Pois saiba que a exceção
(Amantes da educação)
Vai contestar a valer.”

Parece-me muita pretensão querer considerar que a maioria é burra e demente e que uma pequena elite intelectual precisa tomar as rédeas da situação e resolvê-la.

Eu acho que já ficou claro em vários textos desse blogue que não morro de amores pela Rede Globo. E reafirmo que não suporto o programa em questão. Mas não se pode basear uma crítica em argumentos tão pouco válidos. Aliás, a posição em que o autor (intencionalmente, ou não) acaba se colocando é bastante parecida com a posição em que a própria Globo se coloca: como detentor de um saber – logo, de um poder – e como superior aos mortais que, emburrecidos, não podem decidir o que querem ver, apenas deglutem o que lhes é ofertado. Não sou assim, da mesma forma que acredito que o autor do cordel em questão não seja, mas, diferentemente dele, não acho lá muito humilde nem realista pensar que todas as outras pessoas sejam.

Se quiserem ler todo o cordel o endereço é:

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Ajuda aos haitianos

Tenho acompanhado, confesso que com um pouco de preocupação, as notícias relativas ao auxílio prestado às vítimas do terremoto no Haiti. Por exemplo, vi as matérias sobre a demora em se distribuir alimento às vítimas. Segundo o responsável pelo armazém da ONU, a organização ainda não tinha dado a ordem de iniciar a distribuição. Entendo que é necessária uma efetiva organização para atender a tantas pessoas necessitadas. Mas acredito que também é necessária uma efetiva rapidez na prestação de ajuda aos afetados pelo terremoto.

Sobre isso, destaco o que observei no site de notícias das Testemunhas de Jeová (www.jw-media.org site em inglês) a respeito de como elas têm feito para ajudar seus adeptos e outros. Diz-se que no dia seguinte ao desastre, já havia ajuda humanitária disponível. Um dos seus Salões de Assembléias está, inclusive, funcionando como hospital para atender aos feridos. Curioso é que, diferentemente da ONU e dos países a ela afiliados, que dizem ser aptos a socorrer as pessoas neste tipo de desastre, as Testemunhas não afirmam ser uma instituição de ajuda humanitária, mas uma instituição religiosa que, quando necessário, presta esse tipo de serviço.

O que quero dizer é que, na medida em que a ONU e outros países se preocupam com problemas de logística, essa organização, repito, de cunho eminentemente religioso tem organizado ação efetiva em prol das pessoas naquela região. Parece-me que, de alguma forma, os problemas logísticos não são tão grandes assim para eles. É algo que, no mínimo dá o que pensar: a quantas anda a organização da Organização das Nações Unidas? Tem ela realmente cumprido o que está proposto em seu estatuto? Parece que a resposta é não.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

(DES)ENGANOS EM SÉRIE

Semana passada, assisti a um episódio do documentário seriado Lutas.doc, exibido pela TV Brasil. O assunto girou em torno de como a televisão acomoda as pessoas com relação a sua própria condição social. Várias personalidades deram sua opinião e todas elas pareceram concordar em alguns pontos: a televisão é enganosa, não mostra a realidade e, do modo como é feita contemporaneamente, é nociva.

É claro que a TV, do modo como se apresenta, está longe de me agradar, conforme mostram os outros textos desse blogue. Mas pareceu-me que muito mais enganosa que a televisão são as bases em que foram desenvolvidas as críticas feitas no documentário. Vejamos, então: vamos pensar na noção de realidade.

Muitas tentativas foram feitas de se responder à questão básica: “O que é realidade?” Entretanto, parece-me um grande engano considerar o que chamo de “realidade real”, também chamado “realidade objetiva” (o que acarretaria outros problemas: o que é objetividade? É ela possível), como a única realidade possível, ou como a única realidade que realmente importa. Por que, afinal de contas, nem mesmo essa realidade pode se dar a conhecer sem as ficcionalizações proporcionadas pelos nossos sentidos. Explico: todo mundo já ouviu falar em ilusão de ótica. Pois bem, esse é talvez o exemplo mais claro para demonstrar que nossos sentidos não dão conta da realidade como ela é, mas que eles mesmos são formas de ficcionalizar uma realidade. Pensar nesses termos desloca a importância da realidade dita objetiva. (É claro que a questão vai muito além do que expus acima. Mas acredito que, para um texto curto como esse, sejam suficientes essas considerações.)

Daí, surge a pergunta: como se poderia mostrar “a realidade” através da TV, um meio de comunicação que está repleto de ficcionalizações? Se a câmera é posicionada desta ou daquela forma, pode resultar em diferentes interpretações do mesmo fato. Depois há o diretor, o editor, os apresentadores, os atores, cada qual com suas próprias ficcionalizações – intencionais ou não. E, por fim, há as ficcionalizações dos telespectadores. O conceito de realidade se dilui e não faz mais sentido.

Não quero com isso dizer que se deve aceitar a TV como está. Mas as nossas críticas precisam estar bem fundadas, e não ser baseadas em chavões como “Hollywood está se especializando em fazer o mesmo filme, a história sempre se repete” ou “a televisão provoca uma alienação nas pessoas” ou, pior ainda, “as pessoas precisam ser ajudadas...”. Talvez fosse mais interessante pensar em como a televisão engendra novas formas de pensar ou como ela se adequa a esses novos modelos de pensamento, em que o interesse se volta quase que exclusivamente para realidade ficcional. E daí pensar nos efeitos disso na sociedade e no homem. Aí, sim, talvez possamos tentar pensar em como trazer esse interesse para outras realidades. Mesmo assim ainda fica a pergunta: Para quê?

terça-feira, 28 de julho de 2009

Boris casoy ataca o sistema de cotas

Ontem à noite fomos premiados com mais um comentário no mínimo discutível de Boris Casoy. No jornal que apresenta na Band, Casoy se colocou contra as cotas étnicas e sociais por considerá-las uma injustiça para com aqueles que têm o que ele chamou de “mérito” que, ainda segundo o âncora, se prepararam melhor. Sou obrigado a concordar que o sistema de cotas sociais e étnicas realmente rompe com certa meritocracia, mas não posso encarar isso como sendo negativo.

Em primeiro lugar, o sistema de cotas sociais é uma necessidade devido à deficiência gritante do ensino público brasileiro. É a solução para o problema? De fato, não e não pretendo que seja. Porém não podemos deixar de encarar a questão das cotas como uma estratégia de gestão de crise, e não como solução. As pessoas que estudaram em escolas públicas não podem esperar até que a defasagem da educação seja solucionada para ingressar num curso superior. Há necessidades prementes que precisam ser atendidas até que o problema seja devidamente solucionado.

A questão das cotas étnicas é diferente, mas não muito. Ressalto que a relação entre o étnico e o social no Brasil é muito complexa. O histórico de escravidão e de posterior abandono das pessoas negras e seus descendentes à própria sorte, numa sociedade com um tipo de preconceito dificílimo de lidar (o preconceito de não ter preconceito, de acordo com Florestan Fernandes) acabou gerando uma população de afro-descendentes subempregados e pertencentes às camadas socialmente inferiores. Se é fato que há vários afro-descendentes nas classes médias e altas da população, também é fato que os há em muito maior número entre as camadas inferiores. Assim, a validade das cotas étnicas acaba se estabelecendo por motivos parecidos aos explicitados no parágrafo anterior. Trata-se de gestão de crise.

E já que citei a questão da escravidão, o sistema de cotas trata-se também de uma tentativa de sanar a dívida histórica da sociedade para com os negros e mestiços, além dos povos indígenas.

Assim, um comunicador e jornalista do calibre de Boris Casoy precisa estar mais atento às questões envolvidas neste problema antes de repudiar o sistema de cotas publicamente como fez ontem, especialmente pela apresentação de motivos como a defesa (ainda) do “mérito”.

terça-feira, 30 de junho de 2009

RAZÃO ANTROPOFÁGICA: BLACK STYLE E A ANTROPOFAGIA

1. INTRODUÇÃO
Leio sobre antropofagia e só vejo cultura “erudita”. De Haroldo de Campos a Caetano Veloso a antropofagia como marca de certa cultura elitizada, de alguma forma hegemônica e consagrada. Perguntei-me, então: se a antropofagia pode ser pensada como traço cultural nacional, que dizer das produções não-eruditas? Que dizer do pagode, por exemplo?
Tentei responder a algumas questões dessa natureza através da análise do pagode. Escolhi o Black Style, grupo de pagode soteropolitano. Depois de um passeio oswaldiano por conceitos e fatos históricos ligados a fantasia, passo para a apreciação de três músicas da banda pensando como a razão antropofágica atravessa esses discursos.

2. RAZÃO ANTROPOFÁGICA: BLACK STYLE E A ANTROPOFAGIA

Oswald de Andrade: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval. O índio vestido de senador do império.” [1]
Haroldo de Campos: “A “Antropofagia” [...] é o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado [...] a partir do ponto de vista do “mau selvagem”[...] O canibal era um polemista [...], mas também um antologista.” [2]
Mário de Andrade: “(Este livro, afinal, não passa de uma antologia do folclore brasileiro)”.[3]
Oswald de Andrade e seu Manifesto antropófago. Mário de Andrade e sua tentativa de definição para Macunaíma. Antropofagia. E Haroldo de campos resume a questão: antropofagia é antologia e polêmica. Uma apropriação, mas também uma expropriação. Tomar o que é dos outros e modificá-lo, pensá-lo, criticá-lo, remodelá-lo. O inimigo que nos faz fortes. Isso a antropofagia. Andradina.
1555 – Os índios caetés devoram (literalmente) o Bispo Sardinha no litoral de Alagoas. Antropofagia.
Séc. XVII – O Barroco: “Gregório de Matos é já o nosso primeiro antropófago [...] o nosso primeiro transculturador.” [4]
1956 – A poesia concreta. Devoração do código poético. Redefinição da função poética. Devoração da música. Poesia polifacética. Antropofagia.
Séc. XXI – Black Style. PagoFunk. O funk, o estrangeiro, o exército. Devorados. Antropofagia.

3. BLACK STYLE E A ANTROPOFAGIA

Começo este trabalho antropofagizando o estilo oswaldiano do Manifesto antropófago. Desta maneira entrecortada, telegráfica mesmo, Oswald de Andrade aponta para uma nova forma de pensar a cultura no Brasil. A “razão antropofágica” (termo de Haroldo de Campos) atravessa vários momentos da “cultura brasileira” (veja-se, por exemplo, o texto de Haroldo de Campos Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. Ali o teórico expõe como essa razão antropofágica esteve presente desde o barroco em produções literárias brasileiras).
Aqui, porém, quero falar de um grupo de pagode baiano que utiliza essa “razão” em varias de suas canções. Trata-se do Black Style. A banda faz parte de cena cultural baiana desde 2006, quando foi fundada. Suas canções, muitas delas de cunho erótico, acabaram ganhando a simpatia de camadas populares da sociedade: negros e pobres, homens e mulheres que se deixam levar pela sonoridade e pela dança sensual (sexual?) da banda.
Cultura de massa? Sim, embora não goste do termo. “Massa” parece uma coisa amorfa, com a qual se pode fazer o que se quer. É inexato. O termo fica, mas minha discordância, ou, ao menos, minha relativização, dele fica marcada textualmente pelas aspas.
Tendo como componentes Robson Adorno (vocal), Nelson Rocha (bateria), Edson Bonfim (guitarra e direção musical), Fábio Santana (baixo), Ramon Costa (Beck vocal), Hortson Silva (Teclado), Victor Silva (Cavaco), Jeanderson Costa, Raijan Reis, Ronilson Gama e Ricardo Silva, a banda já lançou três CDs: Os bambambans (2006), Solta o Tambozão (2007) e O PagoFunk da Bahia (2008). Este último CD traz no título o termo PagoFunk, primeira antropofagia que analisarei aqui.
O funk carioca (ou apenas funk, como é chamado na cidade onde nasceu) traz uma batida sincopada e letras que muitas vezes falam de amor e sexo. Muitas semelhanças com o pagode baiano. Entretanto, difundiu-se uma certa tradição no pagode baiano de duplicar o sentido das expressões a fim de dar a idéia de uma certa sexualidade, mas sem dizer dela abertamente. Pela inspiração no funk, o Black Style fala de sexo de maneira mais escancarada. Três trechos de músicas, um pagode da banda Parangolé, um Funk de Tati Quebra Barraco e outro pagode, este do Black Style podem servir para pensar esta minha afirmação:

Ela não assiste desenho
Do lobo mau
Ela agora só quer ver
Desenho do pica-pau[5]

Abre as pernas, mete a língua
Já viu como é que faz
Tira a camisa, bota-tira, entra e sai[6]

E aquela loirinha
Oooooooh
Me mata de tesão
Tcheeee
Eu vi uma negona
Oooooooh
Eu fiquei com vontade de fazer o creu[7]

Noto, no primeiro trecho, um esforço em duplicar os sentidos de “pica-pau”, fazendo-se referência ao órgão sexual masculino (pica ou pau, tanto faz), mas não abandonando o outro referente, o desenho animado. Na música de Tati Quebra Barraco o sexo aparece explicitamente, sem rodeios. Sem abandonar completamente a tradição à qual aludi anteriormente, o Black Style fica no meio termo, entre um e outro. A referência ao sexo é evidente, mas a palavra não é utilizada. Antes, troca-se o termo pelo eufemismo (!) “créu”.
Aliás, a referência a este outro funk, a Dança do Créu, do MC Créu, já nos leva a outra antropofagia, imbricada na primeira. Nesta canção, dividida em cinco velocidades, o MC aumenta a dificuldade de execução do passo a cada estrofe (outra característica que aproxima pagode e funk: as letras, muitas vezes, fazem referêcia explícita aos passos a serem executados na dança). Ao fim, a dança se assemelha ao movimento copulativo. No Créu Colombiano do Black Style a visão da “loirinha” e da “morena” dão ao eu-poético vontade de “fazer o créu”. Antropofagia da música do MC. Antropofagia em todos os sentidos: cultural e sexual. Interessante é que se faz referência ao “frango assado” (a posição sexual, evidentemente). Mais antropofagia(s).
A Dança do Créu é aqui relida e despida de sua característica eufêmica original. Não há nenhuma dúvida sobre o assunto da “conversa”. Paradoxalmente, porém, a antropofagia acaba revestindo o termo créu de outros múltiplos sentidos, chegando-se mesmo a tocar, ainda que de leve e por uma metáfora, no comer literal.
Disse anteriormente que o estrangeiro seria comido. Estão aí Mariah Carey e sua canção Without You que não me deixam mentir. O pop romântico da cantora fala de uma perda amorosa, o desconsolo de alguém que deixa partir aquele a quem ama. A leitura do Black Style para essa canção abandona o tom tristonho e se dirige a alguém que tem nome: Yasmin. Na música Yasmin não há abandono. Há uma dúvida: “já não sei se estou na solidão”.[8] Mas não há aquele sofrimento romântico, com laivos de desmaio.
No site oficial do grupo encontrei o seguinte comentário sobre Yasmin:
Também há espaço para um pagode mais romântico no repertório da banda como a música “Yasmin”, que foi uma das mais executadas nas rádios de Salvador. A versão da música “Without You”, da cantora americana Mariah Carey, tem uma letra que fala de amor, e sua melodia romântica já caiu no gosto do público, sobretudo feminino, já que a música exalta a mulher. [9]
Antropofagia do pagode para com a música dita romântica. E estrangeira. O tema, a batida e o idioma são adaptados ao bel-prazer dos tocadores e dos ouvintes, e, sem estabelecer um vínculo com a tradução literal ao semi-literal da letra, aproveita-se o ritmo e inventa-se o resto. O que poderia parecer um inimigo (pergunto-me, quantas pessoas que ouvem Mariah Carey ouvem Black Style? Talvez muitas. Mas somente através de Yasmin se pode ouvir os dois ao mesmo tempo) é convocado a participar do movimento antropofágico de apropriação.
Para terminar: Exército. Por ter uma letra curta, transcrevo-a literalmente:
Eu servi o exército,no 19 BC.Era preguiçoso,nada queria fazer.Lá o bicho pega,você tem que obedecer.De manhã cedo,me botavam pra correr.Atenção pelotão:Preparar, apontar. (Vamos correr)Vamos correr, vamos correr, vamos correr, vamos correr. (8x) [10]
Aqui, uma crítica ao serviço militar obrigatório. O eu-poético não deseja servir ao exército (se houver um cunho autobiográfico, poderia chamar esse eu-poético de Robson Adorno, o Robsão, vocalista da banda e compositor dessa canção): “[Eu] era preguiçoso, / nada queria fazer”. A antropofagia fica por conta da melodia. O som de banda marcial soa durante toda a música. O alvo da crítica é representado por esse som que acaba virando apenas ruído de fundo quando se coloca a batida do pagode e a voz do cantor sobre ela.
Leio essa montagem (no sentido eisensteiniano do termo) como uma pequena narrativa: primeiro, o som da banda marcial representando a “ordem” e a “disciplina” impostos pelo exército (ocidental). Depois, essa representação é abafada e suprimida pelo som de matriz africana (logo, não-ocidental) do pagode que pode representar uma certa “liberação” dessa imposição. O som marcial e seus sentidos ainda estão lá, assim como o exército e o serviço militar obrigatório ainda estão lá. Mas, sobrepondo-se a tudo isso, o som que significa a marca identitária do eu-poético surge, inexorável.

4. CONCLUSÕES

Se a antropofagia é marca de uma identidade nacional, então não são apenas as culturas “eruditas” que refletem sobre essa identidade. Vimos a cultura “não-erudita”, representada aqui pelo Black Style, utilizando-se desse processo para (re)criar canções que passam a refletir um certo pensar. Exército é, talvez o caso mais flagrante de como se se transforma tabu em totem através do pagode. O lado polêmico do antropófago surge aí com muita força: é mesmo uma luta o que se trava diante de nossos ouvidos e dentro de nossas cabeças ao escutar a canção.
Se há razão antropofágica no barroco, na poesia concreta, em Caetano Veloso, parece haver tanto ou mais razão antropofágica nesse pagode canibal: antologista e polemista.
Bibliografia

ANDRADE, Mário. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2008
ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. 2. ed. rev. e ampl. Edusp: São Paulo, 2008
BARRACO, Tati Quebra. Abre as pernas, mete a língua. Disponível em: Acesso em: 08/07/2009
BLACK STYLE. Creu Colombiano. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009
BLACK STYLE. Exército. Disponível em: <> Acesso em: 29/05/2009 BLACK STYLE. Yasmin. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009
BLAK STYLE. A banda. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009 PARANGOLÉ. Pica-pau. Disponível em: Acesso em: 08/07/2009
CAMPOS, Haroldo. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: _____. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 4. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2006
VELOSO, Caetano. Antropofagia. In: ______. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008

[1] ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. 2. ed. rev. e ampl. Edusp: São Paulo, 2008 p. 174, 175
[2] CAMPOS, Haroldo. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: _____. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006 p. 234, 235
[3] ANDRADE, Mário. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2008 p. 220
[4] CAMPOS, Haroldo. Ibid. p. 241
[5] PARANGOLÉ. Pica-pau. Disponível em: Acesso em: 08/07/2009
[6] BARRACO, Tati Quebra. Abre as pernas, mete a língua. Disponível em: Acesso em: 08/07/2009
[7] BLACK STYLE. Créu. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009
[8] BLACK STYLE. Yasmin. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009
[9] BLAK STYLE. A banda. Disponível em: Acesso em: 29/05/2009
[10] BLACK STYLE. Exército. Disponível em: <> Acesso em: 29/05/2009

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Ainda os especiais de natal

Sei que esse texto está um pouco atrasado. Ele foi escrito em 24/12/2008, mas aí vai:

É natal. É tempo de falar dos especiais de Natal. Deixarei um pouco de lado o fato de que a maior emissora do país oscila entre a mesmice de Roberto Carlos e a completa maluquice de Nada Fofa para me debruçar sobre um problema mais específico: o especial "O Natal do Menino Imperador". Passa-se, o citado especial, na época pré Segundo Reinado. Trata-se da fictícia história da "amizade" entre o jovem futuro imperador Pedro II e um escravo. Foi feito para ser tocante, emocionante, "uma lição de amizade", dizia o anúncio.

Amizade? Creio que a relação mostrada no especial é assimétrica demais para se chamar de amizade. Uma das últimas cenas, a que analisarei aqui, revela isso muito claramente. Nela, Pedro II e seu amigo-escravo (com ambiguidade e tudo) trocam presentes. O presente do imperadorzinho para seu amigo é um par de sapatos. Ora, se os escravos não poderiam usar sapatos, o presente de Pedro para seu "amigo" é nada menos que a liberdade.

Pois bem, numa relação simétrica como a amizade esse tipo de presente não é permitido, ao menos não como presente. Tratar-se-ia da reparação de uma injustiça - a escravidão - e não de uma dádiva. O efeito é o tão repetido, tão reafirmado e assimilado mito da bondade do branco. O menino branco é o bondoso libertador do menino negro. Sob sua égide está a vida de um garoto de quem ele diz ser amigo. E a cena final do especial não ajuda questionar isso. Acontece (meu Deus, ainda?) a mera repetição do mesmo chavão batido. Como se liberdade não fosse um direito inalienável do ser humano.

E como se libertar alguém não fosse uma forma de oprimi-lo. Ao invés de pôr em cheque a versão oficial com respeito à relação entre brancos e negros no período escravista, o especial da Globo reforça essa versão. E o que é pior: disfarça esse reforço com uma pele de questionamento. É uma tentativa de parecer um índice de deslocamento da história oficial quando, na verdade, não passa de uma estratégia de manutenção dessa mesma história. Em uma palavra: um embuste.

sábado, 29 de novembro de 2008

Texto completo

Segue o texto completo do meu trabalho, desenvolvido a partir das discussõers levantadas pelo primeiro texto desse blog.